Calma. Não feche essa aba ainda. É provável que você nunca tenha se preocupado muito com CVEs. Eu também pensava assim, como algo distante, responsabilidade do tech lead, até que precisei lidar com o impacto de uma falha de segurança no meio de um lançamento trimestral.
Não foi um aprendizado teórico: funcionalidade sendo retirada de última hora, stakeholders cobrando explicações, a equipe desmotivada. Todo o planejamento, que parecia sólido, ruiu em menos de uma semana. Se você lidera times de produto, precisa tratar segurança como parte da sua estratégia e não como o card de dependência do Jira. Ela precisa estar no centro das decisões, desde o início.
A realidade: Como CVEs podem sabota seu produto e sua reputação
Imagine a rotina da sprint: planejamento finalizado, prioridades claras, equipe focada na execução. A estabilidade parece garantida até que, em algum momento da semana, uma vulnerabilidade "adormecida" em uma dependência antiga vem à tona (estatísticas mostram que 65% das falhas de segurança em produção têm essa origem). O planejamento se transforma em urgência imediata.
A entrega da funcionalidade é interrompida. O lead time, que já estava apertado, estoura de vez. O time técnico, que deveria estar focado em construir, agora precisa correr para corrigir um risco evitável. As noites começam a ser tomadas por correções emergenciais, o retrabalho consome o tempo e a energia que seriam usados para avançar o produto. Lembre-se, a indústria estima que corrigir uma falha em produção pode custar de 7 até 100 vezes mais do que se ela fosse prevenida nas fases iniciais.
Enquanto isso, do outro lado, lideranças tentam renegociar prazos, explicam atrasos que não estavam previstos, entram em lobbies intermináveis para tentar salvar ao menos parte da sprint. O custo da falha cresce exponencialmente; não só o financeiro, que, segundo a IBM, pode ser até seis vezes maior quando o problema é tratado em produção, mas o custo de credibilidade, da motivação do time, do alinhamento estratégico. E o cliente? Ele não acompanha as negociações internas nem os esforços extras da equipe. Ele simplesmente percebe o atraso na entrega e a promessa não cumprida.
Seu papel, Seu legado: construir a cultura que protege o produto.
É aqui que sua atuação como líder ganha um significado ainda maior. Afinal, quando problemas de segurança explodem em plena entrega, a responsabilidade raramente é exclusiva do time técnico; essa ocorrência, muitas vezes, reflete a ausência de um ambiente que prioriza a antecipação de riscos. Liderar o produto, portanto, implica também liderar a criação desse ambiente.
Nesse sentido, a cultura não se impõe por manuais ou treinamentos, mas se estabelece na forma como as decisões são tomadas, nas prioridades definidas e nos critérios para considerar uma entrega completa. Se a proteção do produto não faz parte do dia a dia, o problema vai além do código e está nas prioridades estabelecidas. E a liderança de produto, com sua visão estratégica do mercado e da equipe, desempenha um papel fundamental nesse contexto.
Sendo assim, a cultura de segurança e a criação de um produto estável também está sob sua responsabilidade. Esperar que a engenharia ou times de segurança alertem no final é arriscar a entrega desde o início. O líder de produto, portanto, assume o papel de trazer essa discussão para o centro enquanto ainda há tempo de fazer diferente.
Como Começar: Abandone o Asterisco, crie cultura.
Acreditar que Segurança se resume a um asterisco em um slide de planejamento ou a uma dependência isolada no Jira é uma prática reativa, custosa e, sobretudo, sem estratégia. A chave para construir um produto confiável está em integrar a segurança como um pilar desde a ideação. Quanto mais cedo considerada, menor será a superfície de ataque, menores serão os custos de correção e maior será a confiança no seu produto.
As organizações com maior maturidade em desenvolvimento de produto já compreenderam o valor estratégico de security by design. Os benefícios vão da produtividade à proteção da reputação do negócio e da liderança envolvida.
Mas como, na prática, um líder de produto pode influenciar esse movimento?
Não se trata de executar tarefas técnicas ou se tornar especialista em segurança, mas sim de atuar como facilitador, dar visibilidade ao risco e garantir que segurança seja também um critério de priorização. A seguir, os passos que você, como liderança de produto, pode e deve impulsionar nos seus times.
Primeiro passo: Integração de Segurança no Planejamento e Design
Garanta que o tema segurança seja considerado desde os primeiros momentos do desenvolvimento do produto. Isso significa envolver o time de segurança nas agendas de planejamento, nas revisões de arquitetura e nas decisões de design. Nessas etapas, sua liderança deve direcionar o foco para três frentes:
Requisitos de segurança: Quais padrões, práticas e controles de segurança precisam ser incorporados desde o design? Para isso, compreenda profundamente os processos sugeridos pela equipe de segurança.
Implicações de segurança da nova feature e da sua arquitetura: Quais riscos a nova feature e sua arquitetura introduzem e como afetam a superfície de ataque do produto? Considere fluxos de dados, integrações externas, permissões expostas e qualquer aumento de complexidade que possa abrir brechas. Se possível, realize um threat modeling colaborativo antes da implementação.
Priorização de segurança no backlog: Quais itens técnicos de segurança já precisam ser considerados? Os testes de segurança estão contemplados nas esteiras de CI/CD? Eles possuem prazos definidos para execução e correção? Quem é responsável e qual o prazo para correção das vulnerabilidades descobertas no pipeline?
Em cenários onde não há um time de segurança formal, incentive desenvolvedores experientes e líderes técnicos a assumirem esse papel. Identifique e capacite Security Champions para trazer essa visão nos momentos críticos de criação.
Segundo Passo: Redefina o "Pronto"
Integrar segurança ao planejamento é essencial, mas não basta. Como líder de produto, garanta que nenhuma tarefa ou feature seja considerada concluída (done) sem que riscos conhecidos sejam identificados e tratados de forma estruturada, tornando isso um critério de entrega.
Incorpore verificações de segurança na sua Definition of Done (DoD), dentre elas:
Ausência ou mitigação de vulnerabilidades críticas e altas nas imagens usadas pela aplicação.
Tratamento adequado de dados sensíveis.
Inclusão de security stories, abuser stories ou evil-user stories no backlog, antecipando possíveis abusos e riscos desde a definição dos requisitos.
Princípio fundamental: valide esses itens com os especialistas em segurança; não assuma que você e seu time conhecem todas as variáveis.
Terceiro passo: Além das métricas de engajamento
Como líderes de produto, nossa atenção deve ir além das métricas de uso e engajamento. A saúde e a segurança do produto também se refletem em indicadores específicos que demandam acompanhamento constante e ações proativas. Priorizar essas métricas é investir na construção de um produto mais robusto e confiável. Acompanhe ativamente:
MTTR (Mean Time to Remediate):Defina prazos realistas e ambiciosos com os times técnicos para a correção de vulnerabilidades críticas.Exemplo: "Nosso MTTR deve ser inferior a 15 dias." Estabeleça um plano de ação claro para atingir essa meta.
Débito Técnico de Segurança: Estabeleça um limite aceitável para vulnerabilidades pendentes. Exemplo: "Nosso backlog de segurança não deve exceder 8% do débito técnico total." Quando esse limite for atingido, a remoção do risco precisa ser tratada como prioridade. Isso deve fazer parte da cultura dos times e a cultura se revela justamente nas decisões difíceis, como escolher priorizar a correção de riscos mesmo sob pressão por entregas.
Estabeleça um feedback loop: Após cada falha ou incidente, transforme o aprendizado em ação concreta, automatizando a criação de tarefas no backlog para garantir que vulnerabilidades sejam visíveis e discutidas. Só criar o item não basta, mantenha revisões no mínimo quinzenais entre times de desenvolvimento e segurança para tratar riscos abertos, validar correções e ajustar prioridades. Também estabeleça elo com times de governança para auditorias no gerenciamento de mudanças.
Nota: Estudos mostram que a maturidade nesse processo reduz em 50% o tempo de correção e em 22% os incidentes em produção.
Quarto Passo: Fale a Língua do Negócio
Para que Segurança receba a atenção e o investimento necessários, é preciso ir além da linguagem técnica. Traduza riscos como um CVE em termos de impacto no negócio; aquilo que a liderança acompanha, como NPS, prazos de entrega e aquisição de novos usuários.
Custo de Retrabalho: Explique como ignorar Segurança no início inflaciona os custos e compromete prazos. Exemplo: Evitar a vulnerabilidade agora, corrigindo a imagem usada na pipeline, consome 8 horas de trabalho. Se descoberta em produção, pode exigir até 2 sprints de 15 dias cada, para investigação, correção, validação e reentrega.
Impacto no Roadmap: Mostre como Segurança proativa evita interrupções e permite que o time mantenha o foco nas entregas prometidas. Exemplo: Uma vulnerabilidade crítica não tratada na imagem base travou a pipeline de build no último dia da sprint. A correção levou 15 dias para ser validada pelo time de segurança, o que empurrou a entrega para a sprint seguinte e atrasou o release em 30 dias.
Risco para a Confiança e Reputação do Cliente: Detalhe como incidentes podem abalar a percepção do produto e afetar o relacionamento com a base de clientes. Exemplo: Evitar essa vulnerabilidade agora exige 5 dias de trabalho. Se chegar à produção e expuser dados sensíveis, a empresa pode levar até 277 dias para recuperar a confiança dos clientes (segundo relatórios de mercado).
Implicações Legais e Financeiras: Apresente os riscos regulatórios com clareza. Exemplo: A LGPD prevê multas de até 2% do faturamento anual da empresa, limitadas a R$ 50 milhões por infração.
Quanto melhor você traduzir segurança em termos de impacto para o negócio, mais estratégica será sua conversa com os stakeholders e maior será a chance de garantir priorização e orçamento.
Conclusão: Segurança Começa Antes do Primeiro Commit
Liderar produtos digitais significa garantir que Segurança seja pensada antes da primeira linha de código. Criar um ambiente onde o time discute riscos, revisa dependências e valida vulnerabilidades desde o início é uma das estratégias mais eficazes para proteger o produto e manter a consistência das entregas.
Esse trabalho não é visível no release notes. Não vira headline de lançamento. Mas é o que sustenta a estabilidade do produto no longo prazo e protege o que realmente importa: a confiança de quem usa, o negócio.
Integrar segurança à cultura do time é responsabilidade de quem lidera. E quanto mais cedo essa conversa acontecer, mais forte será o que você está construindo.
Quer se aprofundar? Veja também:
Quem seria demitido se um CVE em seu contêiner fosse explorado?
O desafio da gestão de vulnerabilidades (CVEs): insights dos clientes da Getup
Referências
MITRE Corporation (2023). DevSecOps Best Practices Guide
NIST (2002). The Economic Impacts of Inadequate Infrastructure for Software Testing
Kuhn, R. et al. (2020). How do Ordinary Coding Errors Contribute to Security Vulnerabilities?
Functionize. The Cost of Finding Bugs Later in the SDLC
Akto.io (2023). Building a DevSecOps Culture